AUDIÊNCIA – Com que sentimento chegam ao fim de «Jesus Cristo Superstar»?
PEDRO BARGADO – O espectáculo ainda não acabou e já estou farto de chorar. Tenho uma coisa comigo: sofro antes de as coisas acontecerem.
A – Já tem saudades?
PB – Já. Mas sempre fui assim. Quando fiz o ‘Canções da Nossa Vida’, para a televisão, prometi a mim mesmo que não ia chorar, mas, no último dia, foi mais forte do que eu. O Diogo Infante disse-me uma coisa que nunca mais esqueci: ‘Isto ainda agora está a começar para ti’. O programa funcionou como uma espécie de biblioteca para mim. Aprendi muito. Já conhecia muita música, mas o ‘Canções da Nossa Vida’ fez-me gostar de outros géneros de música. Portanto, quando o ‘Jesus Cristo Superstar’ chegar ao fim, já sei o que vai acontecer: vou ficar completamente de rastos. As chatices e os amuos são reacções que, para mim, só fazem sentido na hora em que acontecem, porque vivo muito as coisas. Mas tudo passa.
GONÇALO SALGUEIRO – Tenho tentado não pensar no último dia do espectáculo, porque tenho uma característica em comum com o Pedro Bargado: sou muito sensível. Mas já me apercebi que ele exterioriza as coisas de uma forma e eu de outra. Eu, normalmente, interiorizo. Nos últimos dias de ‘Jesus Cristo Superstar’, tenho pensado não tanto no espectáculo em si, mas, acima de tudo, nas pessoas que vou deixar para trás. Porque, em Lisboa, será um novo espectáculo, com novas almas. E eu acho que o espectáculo é sobretudo feito de almas. Por mais talento e melhor voz que se tenha, é a alma que faz a diferença. E há muitas almas que não vão para Lisboa e isso dói-me. Conheci pessoas extraordinárias no Porto. Passámos por muitas dificuldades e sofremos muito para fazer um dos melhores espectáculos que já vi até hoje em Portugal – e digo-o sem a menor das modéstias —, com um dos melhores elencos que já vi. As pessoas do Norte têm, de facto, uma qualidade extraordinária. Acima de tudo, têm uma qualidade humana como poucas vezes se encontra no teatro. Trabalhei mais de dois anos no Casino do Estoril e também fiz muitos amigos, como a Rita Guerra, por exemplo, mas, em ‘Jesus Cristo Superstar’, tudo tem sido diferente. Parece que nos tornamos numa família. E ir para Lisboa sem metade da família dói. Estou mesmo com muito medo, porque, provavelmente, não vou ser capaz de cantar no último dia. PB – Logicamente, o espectáculo é o mesmo, mas as pessoas também ajudam a fazer os espectáculos. ‘Jesus Cristo Superstar’ foi criado no Porto, em conjunto, ao fim de muitos e muitos ensaios, e, em Lisboa, não será nunca a mesa coisa, porque nem todos vão para baixo. Vai perder-se alguma coisa pelo caminho. O espectáculo pode ter maior ou menor sucesso, mas, do ponto de vista dos actores, vai ser sempre diferente. É o mesmo que um teclista sair de uma banda e chegar outro: vai, com toda a certeza, tocar a mesma música, mas a intensidade numa ou outra nota dada pelo antecessor será diferente. Porque todos somos diferentes. O problema é que os fãs já estavam habituados a uma certa sonoridade. O mesmo acontece com ‘Jesus Cristo Superstar’: vai ser o mesmo espectáculo, mas com outra bola.
A – No Porto, melhor era impossível?
PB – Sinceramente, não pensei em nada que tivesse a ver com o sucesso, ou o insucesso do espectáculo no Porto. Pensei apenas em dar o meu melhor todos os dias. Sem excepção. Cheguei mesmo a chatear-me num ensaio, a poucos dias da estreia, com os meus colegas, que ficaram aborrecidos comigo porque disse que queria silêncio. A minha única preocupação foi dar o melhor em cada espectáculo. E porquê? Porque quem for ver vai gostar do que viu e vai dizer em casa, aos amigos e no emprego. E mais: eu, quando pago bilhete para ir ver um espectáculo, estou à espera que os actores dêem o melhor que sabem e podem. Se assim não for, dá vontade de sair da sala. Os espectadores que enchem todos os dias o Rivoli merecem o meu melhor todos os dias. Se estiver uma sala cheia, mas ninguém estiver a gostar, à excepção de um espectador, a minha obrigação é dar o meu melhor para quem está a gostar.
GS – Em relação ao sucesso da peça no Porto, nunca tive dúvidas. Mas tive dúvidas de outra natureza.
A – Quais?
GS – Entrei no barco a meio, mas, assim que vi os actores a ensaiar, fiquei com a certeza de que era impossível fazer melhor. O meu maior receio foi saber se eu estaria à altura.
A – Por insegurança?
GS – Não. Por, infelizmente, haver um preconceito em Lisboa em relação à aceitação do público do Porto. Sempre estive consciente de que o espectáculo ia resultar, mas nunca pensei que tivesse quatro meses de casa cheia, principalmente em Agosto, mês em que o Teatro Rivoli nunca esteve aberto. Quem gosta e quem não gosta de Filipe Lá Féria gostou de ‘Jesus Cristo Superstar’. E isso diz tudo. Para mim, o maior triunfo foi saber que houve espectadores que não gostam de Filipe
A – Ainda hesitou?
GS – Não. Fui, pura e simplesmente, encostado contra a parede. Não estava à espera do convite e não sabia o que havia de fazer à minha vida. Não sabia o que me esperava. Aliás, a única coisa que conhecia da peça era a música da Madalena, porque me lembrava de ouvir a minha mãe cantá-la. É, de facto, uma música muito bonita e, para mim, a mais bonita da peça, porque eu gosto das coisas tristes, que falam ao coração. Quando entrei pela primeira vez no Rivoli, fiquei ainda com mais medo, ao ver os actores a fazer coisas quase sobrehumanas. De repente, dou por mim a ser maltratado, a ter quedas aparatosas no palco, que me estão a deixar todo marcado, a ser chicoteado, na cara, nas mãos, nos olhos… O mais difícil, para mim, são as últimas frases e a minha última cena depois do enforcamento de Judas, quando não tenho nada para cantar. Ao contrário de, por exemplo, o Pedro Bargado, que é um actor extraordinário, a minha dificuldade é controlar-me para não me deixar levar pelas emoções, perder a personagem e passar a ser eu. Porque, na verdade, muitas vezes fico assustado com o que se está a passar à minha volta. Mas não posso ser o Gonçalo Salgueiro. Tenho de ser apenas Jesus de Nazaré. É terrível. Tenho de manter sempre uma certa sobriedade, quando tudo o que se passa à minha volta é assustador. Aliás, estou farto de ser chamado à atenção, mas não consigo não chorar quando, na peça, tenho de dizer: ‘Onde está a minha mãe?‘. Choro sempre. Não consigo evitar. Muitas vezes, ainda antes de proferir as palavras finais, já o público está a chorar e a soluçar. É inevitável. Só Deus sabe, por vezes, como chego ao fim do espectáculo, que é de uma intensidade tremenda. Aliás, já me aconteceu desfalecer no fim. Como também já aconteceu ao Pedro Bargado. E já me aconteceu ter ataques de choro e não conseguir libertar-me do que se tinha passado em palco. É um espectáculo muito forte e é natural que quem está do outro lado também fique assim.
PB – Os dois papéis mais difíceis são, de facto, o de Judas e o de Jesus. O meu é uma espécie de montanha-russa que tem de se fazer sem ir muito alto, nem muito baixo, mas o de Jesus também não é nada fácil, porque tem de se manter um registo a direito e não ter altos e baixos. Desengane-se quem ache que é fácil. Se calhar, é mais difícil manter uma linha de serenidade e de controlo do que ter altos e baixos, como se vê, por exemplo, num Rui de Carvalho.
Adorava fazer revista e cinema
A – É verdade que já compôs para Pedro Abrunhosa?
PB – Tenho músicas em novelas e a sonoplastia de todas as peças que fiz no Pequeno Palco, mas nunca compus para Pedro Abrunhosa.
A – Não gosta de Pedro Abrunhosa?
PB – Gosto. Ou melhor, não gosto muito como cantor. Agora, as músicas são fantásticas.
GS – Adorava que Pedro Abrunhosa fizesse uma música para mim. Tem um talento imenso. E a inteligência de não ter a pretensão de ser cantor. Pedro Abrunhosa vem na linha dos cantores franceses dos anos 60, que eram ‘dizers’ e não cantores de fogo-de-artifício. E tem outra vantagem: escreve para ele. É um cantor cujo mérito e trabalho aprecio.
A – Mais do que Marisa?
GS – Eu sou amigo da Marisa, o que é uma coisa diferente. Conheço- a há muitos anos. Começou ao mesmo tempo do que eu. Mas ela pegou fogo, explodiu e lá foi pelo Mundo fora, como vão alguns dos fadistas portugueses. A única diferença estará na estratégia, bem definida, ou não estivesse nomeada para um ‘Grammy’.
A – Vai voltar ao fado?
GS – Nunca saí do fado. Já tenho dois concertos marcados para Novembro, no Casino do Estoril e da Figueira da Foz.
A – E o teatro?
GS – Já tive convites para fazer filmes, num dos quais tinha de interpretar o papel de anjo. Sinceramente, depois de ter feito Jesus de Nazaré, sinto-me preparado para fazer qualquer papel, por mais difícil que seja — e são-no com toda a certeza. Para já, trabalhar com Filipe
PB – No teatro, nem sempre é a traço grosso, mas, quando é, não pode cair na caricatura, nem no ridículo. A coisa tem sempre de ser verdadeira. Em televisão – e ainda mais em cinema –, é tudo feito de pormenores. Um sorriso mais expansivo pode levar o telespectador a pensar que o actor é um canastrão. Com muito facilidade. Enquanto no teatro é bola de fogo lá para fora, em televisão, é a mesma coisa, mas contido. É tudo natural, mas
A – De qual gosta mais?
PB – Gosto mais de fazer teatro.
Não quero sonhar
A – O talento chega para se atingir a notoriedade que os actores de «Jesus Cristo Superstar» hoje já têm?
GS – Nem sempre se singra por causa do talento. O trabalho e a inteligência são essenciais. Ou seja: quando existe muito talento e pouca inteligência, é difícil. O melhor é aliar as duas coisas. É importante a formação, mas uma das maiores artistas portuguesas de todos os tempos não sei se acabou a 4.ª classe. Foi Amália quem abriu as portas à música portuguesa e a levou aos quatro cantos do Mundo. Ia para estúdio sem saber as letras. Como diz o Pedro Bargado, a Amália vivia realmente as coisas. Nunca planeava um espectáculo. Portanto, o talento tem de vir acompanhado de inteligência. Uma Amália, uma Edit Piaf, ou uma Fitzerald são de combustão. Aparecem muito poucas em cada século. Claro que depende sempre do que se está a fazer. O fado, por exemplo, é altamente livre na sua concepção. Peço desculpa, mas também se vê muita gente a fazer coisas sem talento. Trabalham muito, chegam a certos patamares, mas não cantam afinadas, não sabem cantar português e não sabem representar. E eu sou muito exigente. Antes de ser fadista, ou actor, sou público. Há muita gente que goza comigo porque, mesmo quando não estou a actuar, vou ver os espectáculos de ‘Jesus Cristo Superstar’. E porquê? Porque, para mim, é importante saber o que está o público a ver e a sentir.
A – E faz autocrítica?
GS – Eu sou o meu pior crítico. Sou quase autodestrutivo.
A – Não é Filipe
GS – Não. Isso é um mito. Filipe
A – O teatro também já tem «fast food»?
PB — Também. Mas falar de colegas é muito difícil. Porque há sempre o risco de sermos mal interpretados. Por exemplo, os ‘Morangos com Açúcar’…
A – …Em que também participou.
PB – Participei em apenas dois episódios. E porque precisava. Para comer. Fiz um dia uma cena em que se dá uma explosão na escola, vem a caracterização, suja-me as mãos e a cara e eu pergunto se, numa explosão, a roupa também não é atingida. Disseram logo que não podiam estar a sujar o fato.
GS – Quando aparecem as Operações isto, as Chuvas de Estrelas e as Academias não sei do quê, as pessoas são expostas de uma forma tremenda por três ou quatro meses, ganham, são ídolos em Portugal, mas, hoje, já ninguém sabe onde estão. Ou seja, criam falsas esperanças nas pessoas. Há que ter respeito pelas pessoas, a quem lhes é prometido contratos e mais contratos. Portugal tem mercado para três ou quatro e não para 20 ou 30. Fazem estes concursos para se alimentarem da imagem das pessoas, algumas com imenso talento, prometem- lhes mundos e fundos e acabam por as destruir. PB – Destroem-lhes tudo: os sonhos e a auto-estima. Algumas conseguem passar por cima, mas outras continuam a viver o sonho. Quem quer ser cantor no meio musical sofre. E sofre bem. Tem de penar muito e não vai ser um concurso de televisão que o vai levar a ser artista, ou a gravar um disco. O talento, o empenho e a dedicação são decisivos. E acreditar no que estão a fazer. Quando se acredita no que se está a fazer, tem de se ir
A – Também tem sonhos?
PB – Quero apenas trabalhar. Cantar e representar. Não quero sonhar, porque também já tive as minhas desilusões.
A – Desiludiu-se com quê?
PB – Desiludiu-me quando comecei a cantar. O que todos querem quando começam a cantar é gravar um disco. E, quando as coisas não acontecem, desmoraliza- se.
A – Tinha jeito para cantar?
PB – Tinha. Sinceramente. Cheguei a ir ao ‘Chuva de Estrelas’, numa altura em que este tipo de programas ainda era sério.
A – E já não pensa gravar um disco?
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